Meus olhos custam a abrir. Não vou forçá-los, parecem grudados. Quero voltar a dormir, mas o barulho do trânsito lá fora não deixa. Retomo aos poucos os sentidos. Nostalgia. Há uns 20 anos não sentia esse gosto amanhecido de uma noite de exageros. Bebida barata e cigarro. Parei de fumar há 7 anos. Parei? De deitado passo a sentado, abraçando minhas pernas. Que cheiro é esse? Meus olhos vão se abrindo, adaptando-se à claridade, tentando focar em algo familiar, mas não encontram nada. Onde estou? Um quarto de hotel, acho. O rádio relógio marca 10h27.
Acendo um cigarro que encontro à beira da cama. Já me encontro à janela, observando o movimento da grande avenida lá embaixo, que reconheço de imediato. Centenas de pessoas caminham de um lado para outro. O trânsito não flui. A paisagem lá fora é familiar, embora nunca a tivesse visto deste ângulo. A paisagem de dentro é que me consterna. Na poltrona, a roupa, minha, conhecida, que provavelmente estava usando ontem à noite. No criado mudo, além do maço de cigarros, um envelope pardo, uma arma. Sobre a mesinha, um notebook e dois celulares. Junto à parede, uma mala. Depois de alguns minutos observando a cena, tentando me lembrar do que tudo aquilo significa, resolvo tomar a atitude que me parece mais conveniente no momento – ir ao banheiro.
O que está acontecendo? Como vim parar aqui? Dois celulares... No meu celular, duas ligações, do meu banco e de um de meus clientes. Nenhuma mensagem de voz. No outro celular, nenhuma ligação ou mensagem pendente. A lista de ligações recebidas registra uma única ligação, de um número não identificado, às 3h15 de hoje, se hoje for mesmo hoje. Pelo calendário do telefone, é. Números discados, também apenas uma chamada, às 4h27, internacional, para um país de DDI 4, ou 45, ou 453.
No envelope pardo, dois passaportes, pretos, canadenses. Abro o primeiro passaporte. A foto é de um dos meus filhos. O nome, não. O mesmo acontece no outro passaporte: minha foto, outro nome. Dentro do passaporte, um cartão de crédito e uma passagem aérea da Iberia, para... meus óculos? Onde estão meus óculos? Para Madrid, hoje, 17h15.
Nervoso eu estava há meia hora. Agora estou em pânico. Manuseio o revólver, para descobrir que faltam três balas. Cheira a pólvora. Era esse o cheiro que estranhei ao acordar.
Ligo para o escritório do meu celular, para a secretária do chefe – só chefes têm secretárias. A voz dela estava normal. Concentro-me mas não detecto nenhuma alteração em seu tom de voz. O mesmo mau humor de sempre, as mesmas respostas secas. Aviso que minha filha ficou doente e tive que levá-la ao médico. Nenhuma reação anormal, quando menciono o nome de minha filha.
Ligo para o escritório do meu celular, para a secretária do chefe – só chefes têm secretárias. A voz dela estava normal. Concentro-me mas não detecto nenhuma alteração em seu tom de voz. O mesmo mau humor de sempre, as mesmas respostas secas. Aviso que minha filha ficou doente e tive que levá-la ao médico. Nenhuma reação anormal, quando menciono o nome de minha filha.
Cheguei a discar o número de casa diversas vezes, mas nunca fui até o fim. É melhor ligar ou não ligar? Por que só o passaporte de um dos filhos? Onde está ele? Onde estarão os outros? E minha mulher? Ela não sentiu minha falta na noite passada? Por que ainda não ligou? Ela é culpada, vítima ou minha cúmplice? Pressinto que ligar para casa pode não ser uma boa ideia.
Ligo a televisão e o rádio ao mesmo tempo. Não há notícia nenhuma que me ajude a entender o que está acontecendo. Ligo para minha irmã, que mora no interior. Nenhuma pista em seu tom de voz. Minha sobrinha está doente, o ex-marido atrasou a pensão de novo, interrompo a conversa. Minto que no feriado nós vamos visitá-la e desligo. Até o feriado são 10 longos dias. Não sei o que vou fazer nos próximos 10 minutos.
Abro a mala. Em destaque, um maço de notas, dólares americanos. Em notas de 10, 20 e 50. Devem somar uns 3 mil dólares. Por que dólares e não euros? Espanha... passaporte canadense... Por mais que tente, não consigo relacionar as coisas. Nenhuma roupa minha, todas servem perfeitamente. E nenhuma é nova.
De repente, me deu um estalo... Fico nu, empunho o revólver contra minha cabeça, meu rosto em desespero completa a cena... Cinco segundos... silêncio, cortado pelo som de um tiro abafado pelo travesseiro. A bala é de verdade. Descarto estar sendo vítima de brincadeira de mau gosto, pegadinha ou reality show.
Visto as roupas com as quais devia estar vestido quando entrei neste quarto, ajeito como posso os cabelos, pego algumas coisas e desço até a recepção. Observo o lobby do hotel. Algumas pessoas olham para mim e desviam o olhar. Tudo parece normal. Como seria de se esperar, tivesse alguém me vigiando ou não. Nenhum rosto conhecido ou que me chame a atenção.
Dirijo-me à recepcionista e peço para alugar um carro. Ela me pede os documentos. Documentos? Entrego o passaporte canadense e o cartão de crédito. Ela me pede a carteira de motorista, eu não tenho. Ela pede para aguardar e desaparece da minha frente. Estico o braço, recolho os documentos e saio do hotel. Estupidez. Falando português, passaporte canadense e sem carteira de motorista.
No outro lado da rua, avisto um telefone público. Cartão? Nem pensar. Ligo a cobrar para casa. Conto os toques e desligo antes que a secretária eletrônica atenda. Ligo de novo, nada. De pé, com o fone na mão, observo um carro de polícia parando em frente ao hotel. Descem dois policiais, armados. Pode ser coincidência, mas melhor não voltar para o hotel. Ando duas quadras, paro um táxi.
O trânsito lento da manhã de uma sexta-feira me daria tempo para organizar as ideias, se as tivesse. Se as tivesse... Peço ao motorista do táxi para parar na rua de trás da de casa, algumas quadras antes do meu prédio. Caminho por minha vizinhanca, como tantas outras vezes, tudo me parece familiar. Nem tanto. Sempre passo por essas ruas, correndo ou andando, mas sempre com a cabeca em outro lugar. Algumas coisas estão diferentes. Não sei dizer o quê. Acho que é a perspectiva. Do que vem pela frente.
Entro na padaria. Não preciso pedir, o atendente me conhece, cumprimenta e começa a preparar meu café. Expresso, curto, adoçante de saquinho, né doutor? O que aconteceu com nosso time ontem? Agora vai ser difícil virar, jogando fora de casa...
A familiaridade da padaria me enche de coragem. Atravesso a rua. Ao me aproximar do prédio, o portão automático se abre. Não consigo enxergar o porteiro, por trás do vidro escuro da guarita. Aceno para a guarita e me dirijo ao elevador. Desce. Para a garagem, primeiro. Tenho duas vagas. Uma, vazia. Na outra, um sedã popular, chapas de Palmas, Tocantins. O que aconteceu com minha minivan?
Acendo o último cigarro. Vai ser difícil parar de fumar de novo. Empurro a tampa da lixeira, amasso o maço de cigarros e o jogo lá dentro. Ou tento – erro a abertura. Abaixo para pegar o maço. Dessa vez não erro e... Dentro do lixo, uma chave de carro com o chaveiro de locadora. Aciono o controle remoto do alarme. Piscam as luzes do carro na minha vaga. Ligo para a locadora, descubro que o carro está alugado em meu nome verdadeiro. Deveria ter devolvido domingo passado. Em Recife, onde o retirei. Olho para os meus braços. Não parecem queimados pelo sol de Porto de Galinhas.
Entro no elevador, sétimo andar. Pesco as chaves no bolso. Em vão. Fico pensando no que vou dizer quando atenderem a porta. Inutilmente, descubro depois. A porta de meu apartamento está encostada. Abro devagar. Não encontro ninguém. Nada, nem os móveis.
Vasculho os cômodos. Tudo vazio. Atordoado, sento no chão da varanda. Olho para o apartamento vazio. Vazio.
Sorrio, pela primeira vez hoje, ao ver descobrir um maço de cigarros no lugar onde o deixara há 7 anos, quando parei (?) de fumar. A varanda era o único lugar que me era permitido fumar. Tinha um maço sempre à mão. Apresso-me a levantar para alcançá-los.
Imprestáveis. Os cigarros e o isqueiro. O isqueiro me escapa das mãos e inicia sua última viagem. Três segundos depois, se espatifa contra o concreto lá de baixo.
Olho para a paisagem lá embaixo, e de repente tudo passa a fazer sentido! Se correr, acho que ainda dá tempo. Preciso atravessar a cidade para encontrar meu filho. Dinamarca, aí vamos nós.
por @vintesegundos
Parabéns cara, ficou muito legal o conto, bem escrito e com um toque de suspense bem interessante!
ResponderExcluirAdorei! Q suspense fiquei tenso!1 Vc escreve mt bem!!!! =)
ResponderExcluirAmei! Deu vontade de ler mais! Beijossss
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